Ontem ao ver o documentário “palavras (en) cantadas” onde Bethânia magistralmente lia “eros & psique” de Fernando Pessoa, pude rever toda a cena do enterro da minha tia. Espera! a história não é triste, como não poderia ser- em se tratando desta família e em especial desta tia.
Tia Neném já havia falecido há alguns anos e foi cremada, a caixinha com seu,..., sei lá, permaneceu no armário de Chico, seu filho, por um bom tempo, o que muito incomodava a minha mãe e Tia Zezé, dia de finados era aquele constrangimento para as duas, aonde vamos depositar flores para Neném, no armário? Todo impasse se deu porque Inês, a única filha de Tia Neném, que mora há anos na Califórnia, queria jogar as cinzas de sua mãe na Póvoa de Varzim, terra natal dela. Mas, Inês nunca vinha ao Brasil para pegar as cinzas e Tia Neném permanecia no armário.
Bem, mudaram-se os planos. Inês finalmente chegou ao Rio de Janeiro e por uma razão prática resolvemos fazer as últimas homenagens no mar da colônia portuguesa mesmo. Conseguimos o barco com um amigo de Kiko, meu irmão. O nosso capitão era um misto de surfista e timoneiro.
Na Marina da Glória, debaixo de um sol e um calor senegalês, chegava a tripulação: primos de São Paulo, sobrinhos com cestas de pique-nique, mãe e sobrinhas com a sagrada Imagem de Nossa Senhora da Conceição, a Inês da Califórnia e a caixinha com Tia Neném, uma mistura de emoções (tristeza e excitação), um pique- nique al mare e o último adeus à nossa chefe de torcida e guia para o olimpo do notório saber. Tia Neném amava ler os clássicos e era apaixonada por Frak Sinatra e Fernando Pessoa.
Nós sempre conversávamos-mos sobre um livro chamado “viagens com minha tia”, de Grahan Greene, cuja história que é hilária começa com um tímido, recatado e típico bancário inglês que chega ao enterro da sua suposta mãe descobre que a tia velinha e super louca, era na verdade sua mãe e uma grande trapaceira e essa tia tira-o da vida entendiante. O enterro da minha tia parecia ter sido inspirado no tal livro com cenas muito inusitadas.
O capitão do barco nos levava sem ao certo saber como lidar com aquela situação, na verdade com aquela família louca. Todos conversavam animadamente sobre as novidades da terra da garoa e sobre a vida de Inês na Califórnia, uns abriam champanhe e outros comiam os belisquetes. O capitão que já olhava a cena com um semblante desconfiado e já meio temeroso de como aquilo iria acabar era nosso mais novo amigo íntimo.
Ao entrar em mar aberto o mesmo começava a dar seu sinal de que estava agitado, ondas batiam no barco e nos, marinheiros de primeira viajem, chacoalhamos lá dentro. Ai sim tudo mudava, uns enjoavam, outros tentavam acertar o copo na boca, outros contemplavam o mar e Tia Neném. Era tudo ao mesmo tempo agora. A nora de Tia Neném já dava a dica de que era melhor render as homenagens à sogra ali mesmo. Inês vomitava (com estomago e sentimento embrulhado) jogava as tripas para fora e dizia- não invejo quem tem barco, esse tipo de programa não me pega NUNCA MAIS!
Bem, hora do adeus, resolvi colocar a minha trilha sonora-homenagem, que começava com ela, Bethania declamando Eros & Psique, de Pessoa, motivo que me inspirou preencher esse papel até então em branco; todos com os olhos mareados (não choramos disfarçamos a dor nos agitando como uma barata tonta) começava o ritual: abre a caixinha, pega as flores, cade Nossa Senhora, vômitos, cantorias, declamações de poemas... Põe a música, tira a música,..., nosso capitão? Assustadérrimo.
Em seguida a trilha engatava com ele Frank dando o seu adeus a sua eterna fã com My Way, e nós ao som de Sinatra começavamos a nos aquietar. A letra parecia ser o último adeus de Tia Neném à nós, com o seu sorrisinho maroto ageitando os óculos e dizendo:
“And now, the end is near; And so I face the final curtain. My friend, Ill says it clear, Ill state my case, of which I’m certain. I’ve lived a life that’s full. I’ve traveled each and every highway; and more, much more than this, I did it my way”
Aos poucos deu-se o silêncio das vozes restando o som do vento e das ondas batendo no barco, contemplávamos quem foi Tia Neném pra cada um de nós... com o testemunho de nosso timoneiro e do mar, que um dia Cabral avistou e nosso avô aportou.
Em seguida, refeitos, voltamos a ser a velha e boa barulhenta família portuguesa. Nosso marujo parecendo seguir os conselhos de Paulinho da Viola “faça como um velho marinheiro que depois de um nevoeiro leva o barco devagar” apontou nossa Nau para o continente e finalmente atracamos em nosso porto seguro, Terra a vista!
De lá seguimos para um bar tradicional na Urca, onde petiscamos quitutes portugueses, claro, cantamos, bebemos, como em uma festa portuguesa com certeza. E eu te digo “foi bonita a festa Pá, fiquei contente 'inda guardo renitente, um velho cravo para mim (...) sei que há léguas a nos separa, tanto mar, tanto mar...(Chico Buarque) Por fim declamamos o último adeus:
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
Eros & Psique- Fernando Pessoa
(DO RITUAL DO GRAU DE MESTRE DA ORDEM TEMPLÁRIA DE PORTUGAL)
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